segunda-feira, 28 de maio de 2012



Em ‘What We Saw from the Cheap Seats’, Regina Spektor concilia a embalagem pop aos seus arroubos criativos

A doce e excêntrica russa

¬ LUCIANA ROMAGNOLLI
¬ Regina Spektor não tem pressa em gravar suas músicas em discos. Desde “Far” (2009), com o qual chegou ao terceiro posto na Billboard, já se foram três anos. E muito tempo mais faz que compôs algumas canções presentes em seu sexto álbum de estúdio, “What We Saw from the Cheap Seats”, cujo lançamento oficial será nesta terça – embora esteja disponível na internet desde a semana passada.

Para quem acompanha de perto a carreira da cantora e compositora de origem russa– que migrou com a família para Nova York na infância –, quase a metade das faixas é conhecida de registros de shows. É o caso de “Patron Saint”, da qual se encontra, no Youtube, áudio de um apresentação em 2003. Ao menos desde 2007, já circulam “All The Rowboats” e “Small Town Moon”. A letra de “Oh Marcello” vazou por volta de 2008. “Open” e “Ballad of a Potitician” também não são novas. E “Don’t Live Me (Ne Me Quitte Pas)” já estava em “Songs”, seu segundo CD, inédito no Brasil.

Se as faixas de hoje podemter sido compostas antes das de discos anteriores, seria, então, leviano traçaruma linha progressiva na discografia dela. O que acontece desde “Begin to Hope” (2007), quando assinou com uma grande gravadora (a Warner), é que a passagem pelo estúdio deixa marcas cada vez mais substanciais. “Far” foi o auge disso,comarranjos
acobertandoopiano e marcação insistente da bateria, numaembalagem pop.

INDOMÁVEL. Aos 32 anos, Spektor mostra em “What We Saw...” um produto ainda mais trabalhado em estúdio, o que a distancia do som cru de voz e piano dos experimentais primeiros discos. Até certo ponto, contudo.Para alívio de quem a ouve, ela concilia como nunca nesse sexto disco as exigências de mercado – as quais não pode ignorar desde o estouro de “Fidelity” – ao gosto fora dos padrões, que a faz peculiar.

Por um lado, redobra as atenções sobre os doces agudos e as torrentes emocionais, enquanto capricha em ruídos vocálicos, variações melódicas inesperadas e demais excentricidades que dão personalidade à obra. Como artista que se preze, seu terreno não é o do ordinário. Ela preserva algo de indomável. A multiplicidade de estilos habita “What We Saw from the Cheap Seats” como humores oscilantes. Há espaço para o lírico e o épico, o drama e a graça – por vezes na mesma estrofe.

Todas as composições do disco são autorais. As exceções vêm como bônus na edição especial para o iTunes. Trata-se de duas regravações da cantora russa Bulat Okudzhava, “The Prayer of François Villon” e “Old Jacket”, que Regina canta em sua língua materna (como já fez em
versos de “Aprés Moi”, de “Begin to Hope”).Oterceiro extra é o duo “Call Them Brothers”, com o marido Jack Dishel, vocalista do Only Son e guitarrista do The Moldy Peaches.

Seu produtor é Mike Elizondo, da equipe do “Far”, mas que agora atua sozinho. Ao jornal “The New York Times”, ele disse gostar detrabalhar com artistas que ainda não alcançaram o público que merecem, e que identifica, no disco novo, “uns quatro” singles com esse potencial.

Na mesma entrevista,Regina faz um comentário que pode ser entendido como o seu projeto artístico. “Você coloca ‘RubberSoul’ou‘Sgt. Pepper’s’ (dos Beatles) ou ‘Freewheelin’ Bob Dylan’ (do Bob Dylan) e são sólidos. Desde a primeira nota que se ouve, nada sai errado. Por que tudo não pode ser assim?”. Com ela, é.

Consistente da canção de amor à crítica política

O piano de “Small Town Moon” abre “What We Saw from the Cheap Seats” lembrando a fina melancolia de “Eet”, e dá vez a uma alegria contagiante com a entrada da bateria. Regina constata: “Today we’re younger than we’re ever going to be” (“Hoje somos mais novos do que jamais seremos”). É um provável hit.

Na sequência, “Oh Marcello” embaralha tudo: fala de assassinato, brinca com sotaque italiano com um trecho de “Don’t Let Me Be Misunderstood” (gravada primeiro por Nina Simone).

A leve “Don’t Leave Me (NeMeQuitte Pas)” foi revestida de um arranjo primaveril de sopros muito mais suntuoso (e algo irônico) que a versão antiga. Com melodia mais delicada, toda ao piano, “Firewood” comove com letra triste mas esperançosa.

Patron Saint” é provocativamentedestrutiva(uma mistura de “Your Honor”, sem o punk, e “Bartender”), e a cantora avisa: “She’ll break her own heart and you know she'll break your heart too” (“ela vai partir o próprio coração e você sabe que vai partir o seu também”). Mais tradicional, “How” fala de um amor perdido, investindo na beleza de piano e vocais.

Comintrodução eletrônica, a densa e sombria “All the Rowboats” traz Regina criando sons de bateria com a boca, sobre uma letra surrealista. Já em “Ballad of a Politician”, ela critica o poder em tom sussurrado e cortante de ameaça.



Open” é a faixa mais grandiosa, com piano e vocais dramáticos em atmosfera suave que se  agrava. É seguida pelo romantismo rasgado de “The Party”.

Ao fim, a breve “Jéssica” encerra ao violão um repertório tão diverso quanto consistente e expressivo, marcado pela imprevisibilidade. (LR)
A doce e excêntrica russa
Para ouvir

Ouça o disco “What We Saw from the Cheap Seats” em streaming na sessão “First Listen” do site NPR.

A Warner promete lançá-lo no Brasil também no dia 29, como em outros países.

No iTunes, estarão à venda faixas-bônus.

Fiona em junho

É tempo de expectativa para os fãs de cantoras-pianistas. Depois de Spektor, quem lança disco novo em junho – sete anos após o último – é Fiona Apple.

O título, imenso, começa com “The Idler Wheel Is Wiser Than The Driver....”. Já saiu o single "Every Single Night”.


quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Bob Wilson retorna ao palco como ator e diretor em “A Última Gravação de Krapp”

por Luciana Romagnolli

Diálogo entre o passado e o presente

Porto Alegre. Prestes a completar 70 anos na próxima terça-feira, Bob Wilson veio ao Brasil apresentar, somente no Porto Alegre em Cena, “A Última Gravação de Krapp”, seu primeiro trabalho solo como ator nos últimos dez anos, desde que fez o monólogo “Hamlet”. Mais conhecido como o encenador que remodelou a visão do teatro no século XX, elaborando projetos cênicos em que luz, cenografia e sonoplastia são os elementos mais importantes – ao tecerem uma rede na qual se encaixarão o texto e os atores, com gestualidade calculada –, Wilson mostrou, desta vez, também como sua própria atuação se inscreve em cena.

Novamente o norte-americano optou por um texto de Samuel Beckett – aliás, considerado o mais autobiográfico do dramaturgo irlandês. "Quando dirijo um trabalho, crio uma estrutura, e quando todos os elementos visuais estão no lugar, tenho uma moldura para os performers preencherem. Se a estrutura é sólida, então os artistas podem se sentir livres dentro dela. Aqui, na maior parte, a estrutura é dada, e preciso achar a minha liberdade na estrutura de Beckett", define Wilson.

O encenador declarou não ter sentido falta de atuar nesse intervalo. “De tempos em tempos, atuo. É bom para mim como diretor ter a mesma experiência que os atores têm no meu trabalho”, disse o encenador, durante a pequena coletiva concedida no domingo, dia seguinte à estreia (ele não gosta de falar com jornalistas antes do espetáculo).

Curioso que seu retorno como ator se dê diante de um personagem como Krapp, um homem desiludido de 70 anos que ouve, na solidão do seu escritório, uma fita gravada por ele mesmo 30 anos antes. Por seu hábito de registrar anualmente impressões sobre o que lhe passa, Krapp se depara com a própria voz, mais jovem e firme, e os pensamentos de uma época que pensa ter sido o auge e o fim de seus anos de felicidade – e de amor.
Wilson, contudo, não admite identificação com o personagem. Seu interesse, antes, vem dessa estrutura do monólogo dialogado entre um eu do passado e um eu do presente, e o que emerge do confronto entre esses dois seres e tempos.

A elaboração do tempo sempre foi um aspecto importante no trabalho do diretor norte-americano. Quem viu “Dias Felizes” no Palácio das Artes, em agosto passado, há de se lembrar da fixidez da atriz contrastando com a sucessão de amanheceres e entardeceres marcados pela luz. “A Última Gravação de Krapp” fornece mais material para isso. Os primeiros 20 minutos da peça não têm texto. Bob Wilson, com o rosto maquiado de branco e uma patética figura, cumpre uma rotina enxuta de pequenos gestos e ações (como comer bananas), executados de modo completamente extracotidiano. “Odeio teatro psicológico e naturalista. Teatro é um mundo artificial, e Beckett concorda com isso, é um outro mundo que ele cria”, diz.

Por isso, não se estranha a caixa preta (literal) que contém o cenário, visto pelo público só depois que a quarta parede que fechava o espaço é erguida. O cenário é simetricamente organizado, e a essa paisagem visual se une uma paisagem sonora elaboradíssima a partir do instante em que um estrondo de trovão fez tremer o Theatro São Pedro e inaugurou o espetáculo.

No desenho de som criado pelo diretor, sucedem-se trovoadas de maior ou menor impacto e um denso barulho de chuva, durante o qual se distingue o granizo e os momentos de calmaria, enquanto a luz imprime riscos de pingos iluminados sobre a cena. A condição do personagem se faz conhecer não somente pelas palavras e gestos, mas por todo o invólucro – e a forma.

“Eu procuro criar uma tensão entre o que se vê e o que se escuta, em vez de simplesmente ilustrar. Posso dizer que quero matar com raiva ou sorrindo, mas, se eu disser sorrindo, será mais terrível”, afirma Wilson.


Perfeccionismo de Bob Wilson adiou estreia do espetáculo

A esta edição do Porto Alegre em Cena, vieram medalhões como Philip Glass e Peter Brook, mas nenhum espetáculo era mais esperado do que “A Última Gravação de Krapp”, com Bob Wilson. Foi, por isso, grande a apreensão quando um problema na alfândega atrasou em um dia a chegada do cenário à capital gaúcha, onde estrearia na sexta-feira. Perfeccionista como é, Bob Wilson decretou o adiamento em um dia, complicando a agenda de não poucos que foram à cidade especialmente para vê-lo. Tiveram que se acomodar em uma sessão extra no domingo.

Ao fim, a montagem do cenário ficou pronta a tempo, mas, mesmo assim, o encenador manteve a decisão, justificando que não teria como ensaiar o suficiente. A parte mais complicada da estrutura era a montagem e afinação da luz. E esse é também o aspecto em que Wilson é mais rigoroso. Ao chegar ao ensaio final, percebeu imediatamente uma distorção e indagou a quanto estava a luz: 50%. O ideal era 47%.

Seu preciosismo se manifesta também diante dos fotógrafos, a quem pede que não sejam feitas fotos em close. “Meus espetáculos são melhor fotografados do centro da plateia”, avisou a um, que clicava a cena em diagonal. Mais do que caprichos, são cuidados de quem constrói cenários memoráveis e os quer valorizados pela fotografia, que não deve, por exemplo, desprezar a simetria só vista frontalmente.

Ao fim de uma hora de espetáculo, sob o som das palmas calorosas de uma plateia lotada, Bob Wilson voltou quatro vezes ao centro do palco fazendo firulas. Depois que o extremo rigor do artista e o conhecimento acumulado por anos de criação teatral surtiram seu efeito, ele está livre para usufruir.


Passagens pelo Brasil
Bob Wilson tinha 33 anos quando veio pela primeira vez ao Brasil com “A Vida e a Época de Dave Clarck” (na verdade, “A Vida e a Época de Joseph Stalin”, rebatizada por temor da ditadura). Foi tremendo, então, o impacto de seu teatro. Durante a encenação que durava 12 horas, o público era livre para entrar e sair conforme preferisse.

Em 2008, o encenador norte-americano reencontrou o caminho para o Brasil, mas veio sem espetáculo, para participar de uma palestra em São Paulo e de uma conferência no Porto Alegre em Cena, onde estreitou relações com o diretor do festival gaúcho, Luciano Alabarse. No ano seguinte, a turnê de “Quartett”, com Isapelle Huppert, dirigida por Bob Wilson, passou pelas duas cidades. E, em 2010, veio “Dias Felizes”, que se apresentou no Porto Alegre em Cena e no Festival Internacional de Teatro de Palco e Rua de Belo Horizonte.


Thêàtre du Soleil começa turnê em outubro
Após uma retumbante passagem pelo Brasil em 2007, quando apresentou “Les Ephémères” no Porto Alegre em Cena e na cidade de São Paulo, com ingressos vendidos em poucas horas, a diretora francesa Ariane Mnouchkine retornará ao Brasil – e ao festival – com seu mítico grupo Thêàtre du Soleil para três etapas de apresentações do espetáculo “Os Náufragos da Louca Esperança”, inspirado no romance póstumo “Os Náufragos do Jonathan”, de Julio Verne.

Entre 5 e 23 de outubro, faz temporada no Sesc Belezinho, em São Paulo, já com ingressos esgotados. O Rio de Janeiro conseguiu espaço na turnê, e receberá a trupe de 8 a 19 de novembro, no HSBC Arena. A data da venda dos ingressos ainda não foi divulgada.

Para encerrar, o Thêatre Du Soleil retornará a capital gaúcha em dezembro, para se apresentar fora de época pelo Porto Alegre em Cena.

quarta-feira, 15 de junho de 2011

Laurie Anderson no CCBB carioca: uma grande descoberta


Estive no Rio na semana passada entrevistando as atrizes francesas Catherine Deneuve, Sandrine Bonnaire e Audrey Tautou, que participaram da edição deste ano do Festival Varilux do Cinema Francês, e graças ao meu colega Roger Lerina, jornalista do Zero Hora, tive a sorte de conhecer o trabalho ímpar de outra mulher: Laurie Anderson.

Ele me guiou em uma visitinha, infelizmente muito rápida, ao Centro Cultural Banco do Brasil, onde fica em cartaz até o dia 26 deste mês uma mostra retrospectiva desta artista norte-americana considerada uma das mais importantes da cena contemporânea. Perdoem-me a ignorância por não conhecer o trabalho desta fantástica artista, que desde os anos 60 surpreende por suas performances impactantes e de grande força poética.

Com curadoria de Marcello Dantas, a mostra chamada I in U – Eu em Tu, exibe, pela primeira vez no Brasil, 31 obras, entre instalações, fotografias, desenhos, vídeos, músicas e documentações de performance da artista, que esteve no local, no dia de abertura, realizando uma performance em toca violino sobre um bloco de gelo até que ele derreta. Quem não conferiu ao vivo, pode ver o número em vídeo e em fotos.

O que mais me impressionou ao ver a mostra foi a capacidade da artista de mesclar, de uma forma orgânica como poucos artistas conseguem, as mais diferentes linguagens: da escultura à literatura, da pintura à música, da fotografia ao vídeo. É a palavra, aliás, que alinhava quase todo o trabalho mostrado ali no CCBB. Andersen é uma contadora de históridas das mais inventivas como se pode verificar na instalação "Desilusão", uma série de curtas peças de mistério que combina violino, marionetes, imagens e palavras criadas sob a crença de que histórias podem criar o mundo e, ao mesmo tempo, destruí-lo. Em meio às narrativas, há frases como:

"E quando as lágrimas caem dos meus dois olhos, elas caem do meu olho direito porque eu amo você. E elas caem do meu olho esquerdo porque eu não consigo suportar você."

"Sonhei que era um cão numa exibição de cães e meu pai foi à exibição de cães e disse: 'Esse é um cachorro muito bom. Gosto desse cachorro'."

Entre as obras, também há uma série de fotografias em que a Anderson se retrata dormindo nos mais diversos lugares, na rua, na praia gelada, em uma biblioteca, em um órgão público. Ela fez o experimento para saber se seus sonhos seriam influenciados pelos espaços onde repousava. Também há violinos confeccionados por ela; livros em que o conteúdo está relacionado exclusivamente ao ato de "virar páginas"; um diário pessoal em texto e imagem; a videoinstalação inédita Gray Rabbit, com a participação de seu marido, o músico Lou Reed. Então, corra, se puder ver a mostra.

sábado, 30 de abril de 2011

Em 2011, Festival de Curitiba encontrou sua vocação

por Luciana Romagnolli

Passado um mês do Festival de Curitiba, ainda é tempo de dizer que este foi um ano de consolidação, potencialmente divisor de águas na história do evento. Desde que o Fringe cresceu desenfreadamente e a palavra "teatro" foi retirada do nome, acusando a intenção de ampliar quanto se possa a abrangência do evento para outras artes e atividades, ficou claro que, de parte da produção, o investimento seria em dar volume a um evento de proporções grandiosas que atendesse a públicos diversificados e a produções artísticas também das mais distintas, desde o teatro mais comercial, produzido em série, ao de pesquisa. Pelo que entendo, fazer a distinção e a seleção simplesmente não estava no campo de interesse da organização do festival.  Lutar contra as motivações e a visão de quem o realiza não surte efeito. Por isso tentativas como o abaixo-assinado para que houvesse curadoria no Fringe fracassaram.

Pois bem. O festival me parece finalmente ter encontrado sua vocação, a de que os artistas se articulem aproveitando a infraestrutura do festival para propor recortes, pontos de vista sobre seus trabalhos, em conjunto. O que a organização oferece está dado (não quero dizer que seja impossível barganhar uma coprodução ou outros avanços, falo do modelo de evento), um espaço de atuação e visibilidade amplo, como um enorme guarda-chuva. Cabe aos artistas, sobretudo aos grupos, descobrir que podem se aglutinar e chamar a atenção para si nessa multidão disforme.

Iniciativas semelhantes vinham acontecendo há alguns anos, mas foi em 2011 que se viu uma variedade delas funcionamento ao mesmo tempo, delineando programações com afinidades estéticas e sujeitas a alguma curadoria, a alguma seleção: deu-se o retorno da Mostra Novos Repertórios, a continuidade e crescimento do Coletivo Pequenos Conteúdos, a novidade da Mostra Outros Lugares, mais uma edição de leituras e uma encenação na Mostra do Núcleo de Dramaturgia do Sesi-Paraná, a reunião de espetáculos paulistas e do amazonse Francisco Carlos na Conexão Roosevelt, os encontros na sede da Cia. Brasileira pela Mostra Petrobrás, e outros mais. O que isso trouxe de novo? Reforço na divulgação, um pensamento crítico/estético por trás de cada proposta, e a distinção entre centenas de espetáculos, que permite enfim ao espectador (o leigo e o profissional) enxergar com alguma nitidez o que a mostra tem a oferecer e poder fazer suas próprias escolhas. Tanto que nada disso passou despercebido da imprensa nacional, que desta vez pôs o teatro curitibano na vitrine.

Não foi à toa que a maioria dessas mostras continha produções curitibanas. Fora a óbvia facilidade maior dos artistas da cidade-sede se organizarem, isso reflete um amadurecimento da cena curitibana, que teve em 2010 um de seus anos mais felizes. Alguns grupos importantes ainda ficaram de fora, caso da Vigor Mortis, que foca seu interesse em múltiplos projetos neste ano mas decidiu se abster do festival, descrente dele. Ou da Cia. Silenciosa. E da Obragem. Mas a maioria estava lá: desde as companhias muito jovens que se arriscam ainda tentando descobrir a própria linguagem (como muito se vê no Pequenos Conteúdos) às adultas Cia. Brasileira e a Obragem, em sua melhor fase.

E há a pequena revolução que o Núcleo de Dramaturgia do Sesi-PR está realizando na cidade. Fez de Curitiba um ambiente de inquietação autoral, instigou em quem já escrevia e em quem ainda não escrevia o desejo de desenvolver uma dramaturgia justa com o ser humano e com o seu tempo, perscrutando o que há de particular em cada autor, contra a reprodução do imaginário clássico, televisivo ou outro que seja. Obviamente esse é um caminho acidentado, as tentativas primeiras vêm muitas vezes vincadas pelo esforço, ocasionalmente reproduzem estratégias "contemporâneas" sem organicidade, ou falta densidade, mas é daí que podem surgir (e surgem) obras potentes. Diante desse cenário favorável, só se pode esperar que haja, de fato, continuidade.

Quanto aos grupos de fora, podem seguir o exemplo. Este ano Minas Gerais esboçou fazê-lo, ainda timidamente, com uma reunião de esforços para veicular anúncios. Uma mostra (formatada pelos próprios artistas mineiros) poderia surtir mais efeito por lá.


*

Em três dias de permanência, pude ver apenas três espetáculos da Mostra Contemporânea. Lamento, porque as notícias que chegaram a mim relatam uma seleção com maior qualidade do que a média recente.

Lamento também uma das escolhas - o que só reforça para mim a ideia de que o interesse do teatro hoje está realmente nos grupos. Um Coração Fraco (foto acima), ao contrário, é um daqueles encontros episódicos. Teatro de ilustração do texto, extremamente retido às palavras de Dostoiévski, se constroi pelos diálogos e não encontra forma definidida para a narração: ficam os personagens alternados, perdidos "fora" do cenário, a falar um texto que não lhes parece dizer respeito. Não traz na encenação algo que instigue a reflexão e o recomende à mostra oficial de um festival. Tem Caio Blat, ator que felizmente é mais do que uma celebridade televisiva para atrair público, conhece o ofício.

Minhas duas outras escolhas pairaram sobre grupos estabelecidos de quem me intessa acompanhar a trajetória. Sobre Tio Vânia - Aos que Virão Depois de Nós, do Galpão, publiquei matéria no O Tempo e crítica aqui, e em breve postarei a íntegra das boas conversas com a diretora Yara de Novaes e a atriz Fernanda Vianna.

Antes da Coisa Toda Começar (foto acima), do grupo Armazém, se constroi de maneira mais desorganizada (ou desnorteada) do que o habitual na direção de Paulo de Moraes, dentro de um cenário duro, que parece confiná-lo. Mas algumas coisas intrigam na montagem. É sabido que o Armazém faz desse espetáculo uma reflexão sobre si mesmo e sobre a arte de ator. Ambientado em um teatro abandonado, onde reside o fantasma de um ator, o cenário remete a outros de montagens do grupo, com direito às "janelas" giratórias tais como havia em Toda Nudez Será Castigada. Além do fantasma, são protagonistas três atores cuja marca comum é o comportamento egóico, centrado até as últimas consequências nos próprios desejos, vontades, volúpias e dores, que são esmiuçados, revirados, cultivados, de modo que quando o sofrimento desmedido causado pela necessida de compensação desse EU gigantesco e imaturo já não cabe no corpo, sai como grito, berro, histeria, tentativa de suicídio, rock.

E aí Rosana Stavis, atriz curitibana, tem a oportunidade de expor uma potência dramática inédita, cuja energia se extravasa pela voz, sobretudo o canto, enquanto o corpo se molda pela apatia.
por Luciana Romagnolli

Estive ausente do blog por quase um mês, nem mesmo ao que vi no Festival de Curitiba consegui dar vazão, por conta de um pequeno projeto pessoal, agora terminado (dedos cruzados). Espero poder retomar as atividades por aqui.

Abraço

sábado, 2 de abril de 2011

Impressões sobre o ensaio de Tio Vânia, do Grupo Galpão

por Luciana Romagnolli

O Grupo Galpão fez hoje pela manhã um ensaio aberto de Tio Vânia, no Cine Horto. A diretora Yara de Novaes observou tudo da última fileira da plateia. O público, aliás, vê o espetáculo de uma arquibancada mais alta do que o palco, como deve ser na estreia, dia 8 de abril, às 21 horas, no tal Teatro Bom Jesus, durante o Festival de Curitiba.



O cenário inicial revela apenas a grande mesa de madeira, sólida, onde está servido o café da manhã, no quintal da casa imaginada por Tchékhov. Em torno (e até em cima) dela, transitam os personagens da peça, desvelando aos poucos suas relações e (des)motivações. O texto original é respeitado quase na íntegra, sem que isso impeça um e outro caco nascido dos ensaios - geralmente, tentando capturar o espectador pelo artifício cômico, ao mesmo tempo em que dão mais naturalidade à realidade física da cena.

A chave das atuações é realista, como nunca se viu na trajetória do grupo. Pode também causar algum estranhamento a distribuição dos papéis. Embora seja cedo para afirmar qualquer coisa, pois nem estreia houve ainda. Por outro lado, já sobressai a interpretação segura de Eduardo Moreira (foto) como Ástrov, o médico consciente das falhas humanas, inclusive das que ameaçam o meio ambiente, mas suscetível a um copo de vodka. O intérprete cede ao personagem a fala vigorosa e entusiasmada, além de resquícios de encantamento de um belo homem já em decadência. Há outros atores que ainda têm um caminho a cumprir até dar contornos mais precisos aos seus personagens, justificando o impacto que causam ao redor. Resta tempo.

E é de tempo - entre outras coisas - que o espetáculo trata. Um tempo de transição e desesperança, que lança para o amanhã a possibilidade de uma vida melhor, porque o passado foi desperdiçado e o presente se perde no tédio mais profundo. Se há algo a não se pôr em dúvida, é a atualidade cruel das palavras de Tchékhov e da inação à qual se atam. O que não senti ainda, nesse primeiro contato com a montagem, foi um tempo de encenação elaborado a partir desse tempo problematizado textualmente.

Quando cai a tela branca que isola o cenário-jardim, descortina-se uma salão amplo ocupado apenas por umas cadeiras de madeira e pilares em destruição. Estes, funcionam mais como possível metáfora do que esteticamente. Movem-se aos empurrões dos atores, trocam de lugar, reelaboram o espaço sem de fato construir ambientes definíveis. Concedem dinâmica aos deslocamentos e à ocupação espacial, como não há (por princípio) na apatia dos personagens de Tchékhov.

Para dizer mais, só depois da estreia.     

Para ver em Curitiba, se informe aqui.






 

sexta-feira, 1 de abril de 2011

A dimensão criativa do presente, do passado e do futuro

por Luciana Romagnolli

Abaixo, as respostas da diretora Sueli Araújo, da CiaSenhas, para a entrevista sobre teatro contemporâneo. As fotos são de Homem Piano - Uma Instalação para a Memória, em cartaz no Fringe.


O que você entende por teatro contemporâneo e como articula operações e conceitos desse teatro na sua pesquisa de linguagem - por exemplo, em Homem Piano?
Há uma grande polêmica sobre o que seja teatro contemporâneo. De minha parte, penso que ser contemporâneo na arte é procurar se movimentar em um território cuja poética seja o resultado de indagações sobre um presente que mantém contato com o passado, mas intui o futuro. Na CiaSenhas o que nos interessa é menos a discussão conceitual do que seja teatro contemporâneo e mais a dimensão criativa destes três tempos paralelos.

A cada momento observamos transformações na realidade imediata e elas impulsionam a poética de nossos espetáculos. Em Homem Piano – uma instalação para a memória não foi diferente. Nele, tínhamos a intenção de encontrar outros lugares de articulação entre poética e presença, entre estrutura narrativa e lírica, entre realidade e ficção, entre platéia e ator. A nós pareceu que a memória/lembranças/esquecimentos era um tema importante para os nossos dias e a afetividade, uma alternativa com o qual o presente alimenta o futuro.

O que esse espetáculo significa na carreira da CiaSenhas? Me parece que avança em várias frentes, como a relação com o espaço e com o público e a presença cênica do ator.
Sem dúvidas o Homem Piano é um trabalho que redimensiona práticas anteriores da CiaSenhas. Em primeiro lugar porque ele legitima o estudo e a pesquisa como alicerces da criação artística. Em segundo lugar porque nos permitiu desenvolver procedimentos que já a algum tempo vinham nos provocando – como por exemplo maior participação da platéia na construção da escritura cênica, desvendamento do espaço de atuação e radicalização das instâncias ator e performer.


Identifico nos últimos cinco anos (pelo menos) uma tendência em Curitiba ao teatro narrativo, de personagens não delineados, pouca ação e uma relação diferente com o público.Como você percebe o teatro contemporâneo praticado na cena curitibana?
Parece que a narrativização da cena é um fenômeno mundial. Na medida em que o drama é problematizado surgem e reaparecem novas abordagens da cena. O personagem dramaticamente delineado cede espaço para construções mais sugestivas, mais ambíguas, cuja força motriz oscila entre visualidade, sonoridade e relação entre atores e atores e platéia. No caso das estruturas narrativas, a sua premissa é a experiência compartilhada. Ela mobiliza corpos coletivos e estados corporais, imagens criadas e situações reais, verdade e ficção. A narrativa na cena é fundamental porque, mais do que a compreensão dos fatos, a experiência vivida se instaura pela presença. Aspectos importantíssimos no teatro que se quer hoje.

É possível que por Curitiba ser reconhecidamente uma capital de ótimos contistas a nossa subjetividade dialogue muito bem com esta expressão. Nada mais legítimo a exploração desta na cena teatral. Mais isso é pura especulação particular.


O público curitibano processa bem essas novas linguagens ou o espectador médio da cidade ainda se mostra atrelado às concepções aristotélicas ou de um teatro moderno? Isso prejudica a fruição das peças?
Eu tendo a acreditar que o Teatro (relação entre um ou mais indivíduos, diante do outro) seja potente independente de que qualquer linguagem por mais popular ou arrojada que ela seja. E que neste sentido qualquer um pode desfrutar do Bom teatro, em maior ou menor grau de fruição, devido ao nível de conhecimento e abertura que o espectador pode ter. Isso não quer dizer que não se deva exigir do poder público e privado programas sérios de formação de platéia. Não podemos ser ingênuos ao ponto de nos distanciarmos do país em que vivemos e assumir a atitude egocêntrica: faço arte para me expressar e ponto final. Não acredito nisso. No teatro a arte é com o Outro. E o Outro, no Brasil, em sua maioria, ainda carece de “alfabetização” cultural; fruir a arte é um direito de todas as pessoas. É o lugar de construção de imaginário e de elaborações subjetivas diversas. Isso significa permitir ao Outro a assimilação de novas manifestações, a capacidade de articular passado e futuro e se posicionar diante daquilo que participa. É necessário que o espectador tenha a possibilidade de odiar ou amar um espetáculo de teatro sem necessariamente rejeita-lo porque este lhe causa o desconforto da incompreensão ou frustra a expectativa de algo “conhecido”, ou o já visto ou consolidado como um modelo de arte teatral.

Em Curitiba, vejo que cada vez mais artistas e público tentam se encontrar no “desconhecido” que o teatro pode proporcionar. O desejo de acesso é fato, faltam ações claras comprometidas a médio e longo prazo com a arte, o teatro e o público. Só assim é possível caminhar, por vezes emparelhados, por diferentes propostas, artistas e público.

O foco na palavra

por Luciana Romagnolli
Conversa por e-mail com Marcos Damaceno, diretor de Antes do Fim (fotos), em cartaz no Fringe pela mostra Outros Lugares, e coordenador do Núcleo de Dramaturgia Sesi/PR, sobre a dramaturgia contemporânea. 

PS. Respeitei as maíusculas dele.
Para começar, o que você entende por teatro contemporâneo e como articula operações e conceitos desse teatro no desenvolvimento da sua linguagem como dramaturgo e diretor? 
Difícil discorrer definições, colocar palavras que clareiem o que seja o dito Teatro Contemporâneo, teatro feito de pluralidades e ecletismos, contrapontos e desvios. Preferiria me juntar ao Zé Celso e dizer que “só uso o termo contemporâneo porque acho o termo moderno um tanto antiquado”.  Mas, na verdade, não penso que seja assim tão simples. Falo que é difícil por ser um teatro feito de multiplicidades e vertentes que tendem a se esquivar de categorizações objetivas.  Há desde o teatro híbrido, que flerta com a performance e a dança e outras artes, ao Teatro Narrativo (ou a tão bem-vinda Restauração do Teatro Narrativo, como defende Luis Alberto de Abreu). Do Teatro de Imagens, que apropria-se da tecnologia como suporte de linguagem, ao teatro que parte da apropriações de romances.
Mas, não tanto pela vertente (ou categorização), o Teatro Contemporâneo se caracteriza (ou deveria se caracterizar), pela capacidade (ou ao menos intento) de suscitar na plateia novas percepções, novas provocações e questionamentos, não raro opondo-se às regras, normas e convenções dominantes e a discursos estabelecidos. Um teatro que consegue captar elementos de nossos dias e transpô-los à cena, recriando-os de forma como só a subjetividade dá conta de perceber e elaborar.  Recriações da vida que se abrem à exploração de outros universos, à busca de novas linguagens (é na linguagem e pela linguagem que o homem se constitui como sujeito), a universos e linguagens que nos confrontam com nossas próprias verdades, valores e crenças, possibilitando, assim, ampliar nossa visão e expandir nossa consciência acerca da vida, da realidade, do homem, de nós mesmos, eternos enigmas.    
Como dramaturgo não penso muito em conceitos. Mas claro que o que venho estudando deve influir no momento da criação. Acredito que assim é que é.
Como diretor meu foco principal tem sido a potencialização da palavra no teatro. A exploração da palavra pelos atores. Ganhar e sustentar a atenção da platéia, provocando sua imaginação, quase que exclusivamente pela palavra. Sou antes de tudo um homem da palavra no teatro.  
Há alguns conceitos do Teatro Contemporâneo que percebo que se alinham ao que venho explorando, como por exemplo, o foco na palavra em si, a palavra como ação e elemento estruturador e autônomo da criação (em detrimento da palavra como ferramenta para criação de personagem, trama, enredo, ação, diálogos, etc); o foco na palavra poética e seu poder encantatório; a exploração do estranhamento na linguagem; a manipulação (ou recriação) de realidade própria através da linguagem; a mescla de gêneros (fusão do dramático, narrativo e lírico).
São afinidades que percebo entre o teatro que venho desenvolvendo e características do Teatro Contemporâneo, que são casuais (não há acaso, tudo bem, eu sei). Digo casuais porque nunca pensei em “Ah, vou fazer teatro contemporâneo”, assim como muita gente hoje diz “eu faço teatro de pesquisa” só para ter maiores chances de abocanhar recursos em algum edital público.  
E especificamente no caso da peça Antes do Fim?  
Em Antes do Fim, nos debruçamos em criar uma encenação com foco na palavra poética, na proposta do estranhamento (criação de novo universo capaz de despertar novas percepções e sensações),  na mescla dos gêneros dramático, narrativo e lírico e no experimento com a manipulação da linguagem que fosse correspondente cênico e de atuação às propostas estéticas trabalhas pelo autor.  Por tratar-se de um texto inédito, contemporâneo, o interessante é focar no texto, não tentar imprimir algo nele.  Ao contrário de um clássico, que já foi encenado muitas vezes, em que é interessante ter uma leitura pessoal sobre ele, promover quase uma reescrita. Aos inéditos deve haver uma fidelidade no sentido de deixar o texto aparecer.
Identifico nos últimos cinco anos (pelo menos) uma tendência em Curitiba ao teatro narrativo, de personagens não delineados, pouca ação e uma relação diferente com o público. Como você percebe o teatro contemporâneo praticado na cena curitibana? 
O que percebo de positivo é o crescente fortalecimento de (e o surgimento de vários outros)  Teatro de Grupo, que vem se estabelecendo como espaços de criação de trabalhos instigantes e com continuidade. Pesquisa e aprofundamento de linguagem só se fazem com continuidade. O fortalecimento dos grupos e companhias (e não mais tanto a hegemonia do encenador como no Teatro Moderno) parece ser a configuração marcante do atual teatro curitibano. Há alguns grupos que honram o teatro investigativo e representam bem essa inquietação característica do Teatro Contemporâneo na busca de novas linguagens, apesar de serem poucos os que nos apresentam real inovação ou avanço em termos estéticos.
A narrativa desde sempre teve lugar marcante na arte teatral. Os modos épico, dramático e lírico sempre se permearam. Houve um longo período em que o dramático imperou, tendo o narrativo ganhado novo vigor, no mundo todo, a partir dos 70, 80.
Quem são os grupos ou diretores que se movem nesse sentido e quais as questões ou tendências mais visíveis? 
Aprecio o trabalho do Marcio Abreu e sua companhia. Sua competência no desenvolvimento de linguagem e estética próprias, mantendo forte interlocução com o público. 
O público curitibano processa bem essas novas linguagens ou o espectador médio da cidade ainda se mostra atrelado às concepções aristotélicas ou de um teatro moderno? Isso prejudica a fruição das peças? 
Sofro com isso todos os dias, pois não é o público que está atrelado a essas concepções, mas a maioria dos próprios “fazedores de teatro” (dentro do Núcleo estamos trabalhando para obter algum avanço nesse sentido).
Quanto ao público curitibano (que tem, não sei de onde, a fama de exigente, fama que seja talvez devida à frieza e renitisse próprias do povo da terra dos pinheirais) é igualmente complexo discorrer.  Afinal há públicos e públicos tanto quanto há teatros e teatros.A maior fatia do público sempre será aquela em busca de diversão rápida e ligeira, de preferência com algum famoso no elenco, para depois poder se gabar entre os amigos. Mas há também, mas muito mais diminuto, mas não menos considerável, um crescente publico de Teatro de Pesquisa com referencias e discernimentos que o instrumentaliza a ler espetáculos que flertam com linguagem contemporâneas.  Enfim, percebo a existência de um público sofisticado, porem bastante diminuto.
Gosto de citar o exemplo do Club Noir, de SP (que considero altamente investigativo, envolto com as questões mais instigantes do Teatro Contemporâneo). Acredito que o trabalho do Club Noir seria impossível de se desenvolver com êxito no Rio de Janeiro e que, penso, já teria alguma possibilidade de sobrevivência em Curitiba, desde que se contentasse com curtas temporadas e parcas pessoas na plateia.  Porém, mesmo em São Paulo, cidade que tem amplo e diversificado publico de teatro, companhias que se propõem a investigar novas linguagens sabem que tem que enfrentar o fenômeno de formação de platéia. É sabido que grupos de teatro de pesquisa devem se dedicar a formação de novas platéias para seus próprios espetáculos.  Processo a ser conquistado de forma lenta e gradualmente, num trabalho contínuo ao longo de vários e vários anos.
Do outro lado da ponta do “público sofisticado” me ensinou muito a experiência de cumprir apresentações de Psicose 4h48, há alguns anos, nos bairros mais afastados de Curitiba, num projeto da FCC que visava a democratização do acesso aos bens artísticos da cidade.  O êxito da apresentação de peça, considerada de apreciação “difícil” foi muito questionada por membros da Fundação. Mas lembro-me bem que a peça (entre muitas outras de apreciação mais fácil) foi a que por fim teve maior “sucesso” com o público.  Nunca vou me esquecer da apresentação na Vila Verde (vila mais violenta da cidade) feita para 80 pessoas que nunca tinham assistido teatro na vida. A platéia era na maioria de adolescentes com cara de malvados que pareciam só estar ali por obrigação do professor.  Foi inesquecível ver, que aos 15 minutos de apresentação, os mano e as mina já estavam praticamente todos chorando, emocionados e envolvidos com ao que assistiam. 

Os descaminhos da tragédia contemporânea

por Luciana Romagnolli

*Crítica da peça Doce Ismênia, publicada no jornal O Tempo.



Na tragédia grega, Ismênia é uma personagem marginal. Nunca tentou tomar as rédeas do próprio destino como o pai, Édipo. Nem demonstrou a força da irmã Antígona, que enfrentou o rei para dar enterro digno ao irmão. Ismênia nasceu sob o signo da passividade, figurante de tramas alheias. Encontrar uma história individual para a personagem foi o impulso seguido por Rita Clemente no espetáculo "Doce Ismênia" (foto de Guto Muniz), em cartaz no Oi Futuro.

Em companhia de Daniel Toledo (também assistente de direção), Rita desenvolveu uma dramaturgia que trouxesse a questão ao mundo contemporâneo. Para tanto, vislumbrou um caminho que atinge uma multidão de anônimos de qualquer época: a tensão entre a história que uma pessoa gostaria de ter vivido e aquela que se impõe a ela.

Escorada nessa proposição potente - e nas habilidades da diretora como atriz experiente, a exemplo do que já se viu no espetáculo "Dias Felizes" -, a montagem de "Doce Ismênia" apresenta a personagem como uma mulher solitária e retraída, cujo sonho máximo é a vida simples, mas a quem espreita o destino trágico da matriz familiar.

A expectativa da morte precoce é acirrada pela presença do pai (Isaías Campara Neto) e da irmã (Patrícia Siqueira), sentados à esquerda, em cadeiras de plateia, tal qual um coro grego, vertido em representantes do público teatral. É interessante o exercício de metalinguagem, que abre lacunas textuais para comentários leves sobre os rumos da encenação, além de referências à figura de Édipo - Antígona, por sua vez, fica quase incógnita.

No outro lado do cenário, iluminado por postes de luz altos e recurvados, um mecânico (Olavo de Castro) repara a carcaça de um fusca, contrapondo à malfadada tragédia a chance de a personagem cumprir um destino comum.

Obstáculos. A montagem não chega a elaborar uma proposta para as questões que deslocam Ismênia de sua marginalidade histórica. Antes, apresenta no palco o problema do qual parte e seus descaminhos. A decisão faz lembrar os conflitos e incertezas sobre "Barbazul" que o Teatro Andante pôs em cena.

O primeiro obstáculo que enfrentam é pensar o que seria uma tragédia contemporânea. A resposta aponta para um mundo onde já não há duelos. Opta-se, então, pelo acidente de carro.

Sem negar que o trânsito possa ser motivo trágico hoje, fica ao público a possibilidade de contestar uma escolha que retira a tragédia do violento embate humano e a deposita no choque homem-máquina, sem explorar mais o componente humano da irremediável solidão de Ismênia.

A essa inconsistência no desenvolvimento da personagem, junta-se um desnível nítido entre as qualidades dos intérpretes, o que esvazia as piadas metateatrais entregues a Isaías Campara Neto, enquanto as falas de Patrícia Siqueira vêm desprovidas de inflexão. Seus personagens se tornam acessórios. Para a atriz Rita Clemente, é ocasião de sobressair e demonstrar sua destreza. Para a diretora Rita Clemente, faltou o equilíbrio.

Agenda
O que. "Doce Ismênia"
Quando . Hoje, às 21h; amanhã, às 19h e 21h; e dom., às 19h
Onde. Teatro do Oi Futuro Klauss Vianna (av. Afonso Pena, 4.001)
Quanto. R$ 15

quarta-feira, 30 de março de 2011

O frescor do encontro com o público

por Luciana Romagnolli





Desta vez, quem fala é Marcio Abreu, diretor da Cia. Brasileira de Teatro, que encena Oxigênio durante o Fringe. Para quem não viu, é minha principal recomendação para esta edição. Vamos às respostas:

Qual o lugar e a função do teatro na sociedade midiatizada e individualista em que vivemos? 
É o lugar da escuta, da ação compartilhada, do encontro em lugares improváveis, da ressignificação do humano. O teatro, assim como toda arte, tem um aspecto de inutilidade e, muito embora eu acredite na importância de afirmar essa inutilidade, admito uma certa função da arte por trás de tudo. É contraditório: a própria inutilidade exerce uma função, como, por exemplo, propor novas relações das pessoas com a noção de tempo. Quando se vai ao teatro, vive-se um tempo relativizado. Isso não é necessariamente útil, mas estimula a sensibilidade e pode promover novas percepções do outro, de si mesmo e do mundo.

O que você, à frente da Cia. Brasileira, entende por teatro contemporâneo? Que é o mesmo que eu perguntar o que lhe interessa dentro do arcabouço do que se convencionou chamar assim. 
É uma questão interessante, que só dá pra tentar responder de dentro da fogueira. Definitivamente penso que teatro contemporâneo não está necessariamente ligado à noção de teatro que se faz nos dias de hoje. Nem sempre essa duas categorias coincidem. Penso que existem pelo menos duas questões das quais não se pode escapar quando falamos de teatro contemporâneo: a primeira é o FAZER repensando os modelos que existem até então (sobretudo ampliando as noções de escrita para teatro), a segunda é a PRESENÇA do ator em relação ao público e como, a partir dessa relação, surge um novo conceito de encenação, favorecido pelo estatuto fundamental da APRESENTAÇÃO.

Você acha que o espectador médio ainda carrega expectativas antigas, relacionadas a um teatro moderno ou aristotélico, com enredo, personagens e ação, ao assistir a um espetáculo teatral hoje? Quais seriam as maiores dificuldades? Isso prejudica a relação com a obra? 
Sim, acho que esse fenômeno acontece, mas talvez em menor escala do que imaginamos. Isso é, em geral, um problema de leitura em amplo sentido e não tem a ver com ter mais ou menos informação, experiência ou cultura. Tem a ver com condicionamentos sociais. Se eu leio apenas a minha expectativa, ou seja, se eu só consigo ver numa obra aquilo que eu espero dela, certamente a minha chance de ficar frustrado é grande. Se eu me posiciono aberto a uma experiência, seja ela qual for, serei mais permeável a tudo e poderei exercer meu senso crítico, formular opiniões, responder sensivelmente como leitor ou espectador. Tenho a impressão que um público supostamente menos viciado, ou seja, aquele que não é pseudo intelectual, mas, ao contrário, ou não sabe nada sobre a obra ou ainda, o outro extremo, aquele que sabe muito sobre a obra, acaba por se relacionar de maneira mais potente com a arte contemporânea de um modo geral. Mas isso é apenas uma impressão de dentro da fogueira. E, infelizmente, o que acontece é que temos uma grande parcela da população que escolhe o medíocre como sensibilidade. É a famosa ignorância consentida e consciente, por escolha. Contra isso é difícil lutar. De qualquer maneira, no teatro dos dias de hoje tem espaço para o teatro contemporâneo, assim como para o teatro da confirmação das expectativas medianas. Ambos podem ter qualidades e defeitos.

Em Oxigênio e em Vida a companhia repensa o modo como o ator se coloca em cena, pela narração-performática. Como o grupo tem entendido essa relação entre ator e texto, ator e plateia? 
Antes de tudo, posso dizer que essa é uma busca de anos de trabalho. A continuidade, neste caso, é fundamental. Antes de Vida e Oxigênio, já buscávamos um frescor no encontro da cena com o público. Isso quer dizer: como mobilizar o ator e os elementos que compõem a dramaturgia para convergir na criação de um tempo real, de um momento presente, com todas as suas armadilhas e dificuldades? Por um lado isso significa o exercíco técnico de precisão em relação ao texto e à cena, assim como o exercício de abstração e "esquecimento", tudo isso simultaneamente. É desta forma que tenho trabalhado como dramaturgo e encenador e é isso que obsessivamente proponho aos atores. Em Vida e em Oxigênio, acredito que conseguimos graus diferentes, mas ainda assim significativos, de encontro com o público no tempo real. Vejo que o teatro acontece, mas a fragilidades declaradas e assimiladas.

Quem são os pensadores do teatro que mais o instigam hoje e por quê?
Nos últimos anos tenho tentado acompanhar os trabalhos do coreógrafo Jerôme Bel e da intérprete e coreógrafa Vera Mantero. Ambos trabalham na frequência da técnica associada ao frescor do encontro com o público.